Edición 24: Cabeza de tierra

Lior Zisman Zalis

Tiempo de lectura: 26 minutos

A
A

30.01.2023

Táticas Encantadas e a Multiplicação da Política

Hilando con sutileza las fibras de las fuentes orales, Lior Zisman Zalis nos habla del «terecô», en la región de Codó, Brasil: más allá de ser una religión o «fenómeno cultural» es otra forma de concebir la agencia y la intransigencia de los seres, desafiando a su vez los alcances de la razón instrumental occidentalizada.

[Texto en español debajo]

A ausência de registros, de documentação oficial e a falta de atenção por parte de historiadores ao terecô de Codó dificulta o acesso a uma memória fragmentada e dispersa pela oralidade dos mais antigos. Tendo como interlocutores os mais velhos, sua locução fragilizada produz uma sonoridade rouca de palavras trabalhadas no sussuro. O cansaço da voz dispersa o que contam, despreocupados com a certeza da sua apreensão. Aparece algo da natureza do murmúrio, essa coisa feita de som e músculo que ora canta, ora conta, ora se perde para logo encontrar caminho para seguir ecoando. Tentarei aqui rascunhar algumas das memórias que possam armar uma estrutura de reflexão e suspeita. Contadas a mim e outras a amigas, são memórias que não se encaixam, que afrontam, desafiam e apontam limites a certo sentido de ação política. Aspirando operativos táticos, elas anunciam que a pluralidade do ser produz uma pluralidade do agir. Desenham horizontes e suspeições para os projetos de secularização. Narram uma política encantada.

O terecô é uma religião de matriz africana com significativa influência indígena cujo berço é a Região dos Cocais, especificamente o município de Codó, interior do Estado do Maranhão no Brasil. Identificada também como encantoria, encantaria, nagô ou macumba —e em muitos casos como umbanda—, encontramos praticantes e tendas de terecô do Ceará ao Pará, cada uma com um terecô distinto. Essa diversidade faz com que qualquer tentativa de definir a encantoria seja insuficiente. Não apenas pela complexidade e variedade de práticas em cada casa, cada uma com sua doutrina, mas também pelo segredo e mistério que a acompanha. No terecô, a obediência, o cuidado, as obrigações e o zelo são feitos aos encantados, entidades que baixam ou incorporam nos corpos dos brincantes (como se autodenominam os praticantes) em diferentes contextos da vida social, não necessariamente restritos ao momento do tambor. Essa presença sistêmica faz destas entidades seres que participam ativamente do cotidiano e do dia a dia dos brincantes, entramando a vida humana com a não humana.

Como uma das cidades com maior concentração de terreiros por metro quadrado do Brasil, Codó é pejorativamente chamada de “terra da macumba”, “capital do feitiço” e “meca da feitiçaria”, estigma produzido pelo racismo e pela intolerância religiosa às religiões de matriz africana no Brasil. Ao mesmo tempo, a fama de Codó se deve também a uma grande procura de pessoas do Brasil todo aos pais e mães de santo que trabalham na cidade, resolvendo problemas de diferentes naturezas, do amor à política. Ainda que disseminado e extremamente presente no cotidiano da cidade, é explícito o preconceito para com o terecô e os brincantes, associando-o à “coisa do demônio”, especialmente por parte das igrejas evangélicas e neopentecostais. A encantoria, contudo, responde à sua maneira.
Era dia 16 de agosto quando saíram para a rua os brincantes, encantados e simpatizantes da Tenda Espírita de Umbanda Rainha Iemanjá, cuja mãe de santo é a Mãe Janaína, filha do finado Bita do Barão, famoso pai de santo da cidade. Nesta “passeata” – evento que ocorre em muitas tendas nos quais os encantados e os brincantes saem na rua e caminham por horas – os brincantes caminharam pelo centro da cidade de Codó guiados por uma aparelhagem de som de mais de 3 metros de altura que amplifica os tambores em ritmo da Mata. Logo ao início da passeata, havia um grupo evangélico que entoava músicas gospel e cantos de louvor a Jesus Cristo, bradando xingamentos aos brincantes. De repente, no meio deste grupo, uma criança que não deveria ter mais de 15 anos recebe a entidade Pomba Gira, abrindo uma roda à sua volta com movimentos irreverentes. Sua coreografia é logo identificada pelos brincantes que, com humor, percebem o que se estava passando ali. A entidade dança no meio dos crentes, desafiando suas rezas e exorcismos. Alguns tentam contê-la, sem sucesso. Depois que a passeata passa, a Pomba Gira vai-se embora, levando o corpo da criança ao chão.
Fruto do racismo estrutural e religioso do Estado colonial Brasileiro e da sociedade, o terecô e as comunidades religiosas negras, como muitas das religiões de matriz africana no Brasil, são marcados por uma histórica perseguição e repressão, mais ligada ao Estado que a outras comunidades religiosas. Os antigos, “troncos velhos” como chamam aqui, contam algumas histórias sobre esse tempo, especialmente sobre algumas táticas para que os tambores não parassem, e para que a prática sobrevivesse até hoje.

As histórias, ainda que sejam muitas, são pouco transmitidas aos mais novos e estão constantemente sujeitas ao desaparecimento e esquecimento. Peço, portanto, licença aos brincantes e aos encantados para contá-las aqui.

A irreverência dos encantados em relação àqueles que os desafiam aparece em diferentes trabalhos sobre o terecô. A antropóloga Mundicarmo Ferretti registrou que Légua Boji Buá de Trindade, o Velho, entidade antiga e chefe da Encantaria da Mata Codoense, estava associado a defesa dos escravizados frente aos senhores. Sua atitude desafiante era marcada por histórias de aparecimentos transgressores. Conta-se que ele entrava na cidade montado em um burro, segurando o rabo do animal como a rédea, cuspindo nas casas dos brancos. A quem viesse falar com ele, logo castigava, possuindo-a e fazendo com que se debatesse no chão, ou colocando-a para subir em árvores altas cheias de espinhos. Depois disso partia com sua garrafa de cachaça e desaparecia.[1] Raimundinho Pombo Roxo, pai de santo com 94 anos de idade, conta a história do dia em que o Velho foi preso na delegacia depois de uma batida policial, fato recorrente no tempo em que o terecô era proibido e perseguido pela polícia. Na história, registrada inicialmente pela antropóloga Martina Ahlert[2], o Velho, em cima da finada Nazá, chegou na delegacia preso, mas logo pediu cachaça e dançou ao som da cabaça tocada por Raimundinho. Desafiando o Tenente Vitorino – figura que aparece em diferentes memórias da perseguição ao terecô – e os policiais com giramentos dançados e densos e constantes goles, foi liberado para nunca mais voltar.

Escutei de Tereza, mãe pequena da Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara, atualmente chefiada pela Mãe de Santo Maria dos Santos, a história de outra prisão do Velho Légua. Durante uma batida policial para acabar com o terecô, enquanto todos fugiram, Légua Boji, montado (incorporado) em um homem, ficou parado no meio do salão, estendeu as mãos e disse ao policial “Me prende”. Assim fizeram e o levaram para a delegacia. Ao chegar lá,  abriu a cela e mandou os policiais entrarem. Confusos com o pedido, Légua logo explicou: “Não fiz nada errado para ser preso, quem fez foi vocês, pois tratem de entrar aí” e os policiais cumpriram. O velho Légua só saiu saindo. Cada vez que escuto histórias de como os encantados desafiavam o Estado através da afronta aos agentes policiais, penso na radicalidade política desta memória. Nessa política da afronta joga-se com a racionalidade do Estado. Sua força repressida é desafiada pelos encantados e pelos brincantes, não apenas colocando medo nos seus agentes, mas jogando, brincando e dançando com sua autoridade. O lúdico, o político e o desafio entrezcruzam-se na conformação de uma ação política própria.

Contaram-me também histórias de policiais que entravam nas tendas para proibir o terecô, mas acabavam “caindo” nele. O Pai de Santo Zé Baixada falou que ele mesmo colocou uns policiais que queriam acabar com a sua festa para tocar cabaça: “Tocaram até de manhã. Não sabiam tocar, mas na hora já aprenderam”. Tereza conta uma história similar. Quando aquele Tenente Vitorino tentou acabar com o terecô na tenda de Dona Naza, ao chegar jogou o cacetete e a arma no chão, tirou os sapatos e bailou o terecô a noite toda: “Ele não sabia porquê, mas foi proibir o terecô e acabou caindo nele”. O sentido de “cair” alude também a uma política da derrubada, tanto o corpo, como a autoridade caem, sucumbem a uma rítmica e são arrastados para uma atmosfera.

Submeter-se ao ritmo do terecô, chamado de ritmo ou tambor da Mata, é transformar a autoridade performativa do Estado.

Ao encantar os corpos dos policiais, aparece uma política outra. Desde que começei a escutar essas histórias não deixo de pensar em como estas táticas inusitadas de confrontação com o poder do Estado perturbam seriamente qualquer programa político de guerrilha ou repertório tático contra-colonial.
Esta perseguição sistemática e o estigma da feitiçaria faziam com que muitos dos pais e mães de santo batessem o tambor em locais reservados, como nas partes traseiras das casas ou em espaços mais afastados da cidade, nas matas de babaçu ou perto dos rios e lagoas. Faziam um toque silencioso, muitas vezes sem um tambor, usando bambús, palmas e outros instrumentos. A antropóloga Martina Ahlert, em seu trabalho sobre o terecô de Codó, conta-nos uma conversa que teve com Seu Bigobar, na qual ele diz que os encantados são considerados os donos da mata e, portanto, restringiam o acesso a estes espaços a quem queriam: “só entravam na mata aqueles que os encantados queriam”[3]. “Dizia-se”, escreve Ahlert, “que os policiais ouviam o som dos seus tambores marcando o início dos rituais, mas que quando se deslocavam em direção a eles, acabavam se perdendo. Quando percebiam, já estavam em outros locais do município”[4]. Os policiais ouviam o tambor de um lado mas eram levados para outro, e assim sucessivamente. Em outros casos, os caminhos nunca levavam ao destino. Andavam mas constantemente perdiam-se. Escutei de Dona Mazé, esposa de Raimundinho Pombo Roxo, que nos arredores de onde se batia o tambor, os caminhos eram fechados com rezas para que a polícia não os encontrasse. A Mãe de Santo Vicença, contou-me entrelaçando os dedos que a mata mesma fechava os caminhos com raizes cheias de espinhos: “Procuravam a noite toda e não encontravam o terecô”. Como uma espécie de política de despiste, os encantados alteravam as percepções, os caminhos e as direções para que ocorresse a dissimulação.
Outras memórias revelam a participação ativa dos encantados nesta resistência, como esta contada por Roberto, taxista da cidade, que lembrava as histórias de seu tio que tinha uma mesinha de santo em casa e fazia seus trabalhos ali: “a gente morava nesse trecho aqui do outro lado da ponte, da Praça da Bandeira. Ele estava fazendo o movimento dele lá, quando os guardas municipais, a polícia, passava apitando e aí ele mandava (…) os encantados dele levam esse pessoal para tomar banho no rio, no Itapecurú, até quando terminasse. (…) Encarnava e ia tomar banho. Quando terminava, aí já liberava eles”. Estas histórias são corriqueiras e também foram identificadas por Martina Ahlert, era “corriqueiro […] escutar que quando os policiais encontravam o local do tambor ‘caíam’ (ou seja, recebiam encantado), dançando até a manhã do dia seguinte”.[5] No Quilombo Santo Antônio dos Pretos, território localizado a 70km da cidade de Codó onde dizem ter surgido o terecô, contam sobre o dia em que o nefasto Tenente Vitorino foi proibir o terecô.[6] Juntou um grupo de policiais e foi para o quilombo parar o tambor. Quando chega no local, para a sua surpresa, “cai” do terecô junto com toda a patrulha que o acompanhava. Dançam três dias e três noites com encantado em cima. Depois disso decide “liberar” o terecô.

A participação do Tenente Vitorino, lembrado como um homem maligno que odiava a macumba, esta sempre acompanhada do seu fracasso. Ele sempre perde e o terecô, bem como os encantados, encontram alguma forma de dar a volta, de fazer com que o terecô, como dizem aqui, “vença” ou seja “libertado”. Obviamente houve momentos de repressão e proibição de tambores, mas sempre aparece o momento de mencionar Tenente Vitorino, o policial que tentou proibir o terecô, mas não conseguiu.

Diferentes histórias destas são contadas pelos mais velhos e pelos próprios encantados em diferentes regiões do Município, de Miragaia a Santo Antônio dos Pretos. Fato é que os encantados incorporaram nos policiais para fazer seus corpos participarem do terecô. Nesse sentido, além da irreverência performativa, além do despiste, conseguimos identificar nessas histórias uma afronta ontológica ao próprio conceito de política ocidental.

Encontrei nessas narrativas, especialmente àquelas dos encantados incorporando em policiais a confirmação de uma suspeita. Se me perguntam sobre a verdade, sobre a prova, sobre a possibilidade de tudo isso ser uma grande fantasia, não deixo de pensar na fabulação que é a própria política, especulação em cima de especulação, mito em cima de mito. Do contrato social à Justiça, nos afogamos na fábula. O que se mobiliza aqui é outra sociabilidade e, logo, outra política. Não se trata de uma “crença” ou um “fenômeno cultural”, mas outro modo de conceber a agência e a intransigência dos seres. Ao desafiarem o Estado, os encantados e os brincantes desafiam também a História do ocidente, a História das revoluções, a História das revoltas, insurgências e agitações edificadas sob um racionalismo secular que busca afastar a relevância da espiritualidade e da religiosidade, bem como de outros seres, na mobilização política de muitas sociedades.

Essa suspeita é ecoada em debates contemporâneos sobre o que tem sido chamado de lutas ontológicas, nas quais não humanos participam ativamente dos processos de mobilização social e política. Segundo Arturo Escobar, se o conceito de comunidade deixa de centrar-se no humano e passa a incluir presenças não humanas, consequentemente “o terreno da política se abre a não-humanos”.[7] Novas táticas e movimentos emergem como formas próprias de lutas. As diferentes expressões ontológicas levam tanto a outras formas de convivialidade e de ancestralidade, como a outros modos de participar politicamente da sociedade em que estão inseridas.

Podemos pensar na presença de táticas nos conflitos e nas guerras que implicam diferentes formas de proteção e fechamento do corpo, o papel de entidades e líderes religiosos em movimentos políticos, a capacidade de certos sujeitos de transformar-se em animais ou em outros seres. Todos estes e muitos outros elaboram múltiplas ontologias políticas. Marisol de la Cadena e Arturo Escobar têm trabalhado com a questão da pluralização da política[8] questionando o impacto na concepção moderna da política quando esta não se restringe aos humanos através da emergência de atores sociais até então à sombra da política, como líderes religiosos, entidades, deuses e outros seres.

Se voltarmos aos casos do terecô e sua história de lutas identificamos um modo específico de encontro e confronto entre mundos traduzidos em diferentes táticas encantadas. Quando se multiplicam os seres, multiplicam-se as possibilidades de ação. Os encantados não apenas confrontam o Estado, como também tomam posse de seus agentes, encarnando em seus corpos para fazerem deles seus. Mais que abrir a política a outras ontologias, multiplicando suas possibilidades de ação, perturbação e invenção, é importante reconhecer a multiplicidade de táticas que orientam as lutas. O caso da participação dos encantados em ações contra as batidas policiais que buscavam reprimir o terecô é apenas um caso dentro de um mapa maior de diferentes processos de insurgência, levante e resistência nos quais estão presentes entidades, forças e tecnologias. Diferentes grupos sociais que sofrem a violência colonial reagem arrastando suas cosmologias junto a modos específicos de ação política[9] mobilizando aquilo que Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino nomearam de “espiritualidades de batalha”[10]: o uso tático da religiosidade em confrontos contra-coloniais. Nesse mapa de espiritualidades insurgentes, tecido na contramão de uma acepção secular da política, desenham-se sistemas orientativos, búsolas para outros horizontes, feituras, agires, seres e pensamentos que, ao multiplicar a política, multiplicam junto às formas de disputá-la.

[A continuación texto en español]

Tácticas encantadas y la multiplicación de la política

La ausencia de registros, de documentación oficial, y la falta de atención de les historiadores al terecô de Codó dificulta el acceso a una memoria fragmentada y dispersa a través de la oralidad de los ancianos. Teniendo como interlocutores a los ancianos, su voz debilitada produce una sonoridad ronca de palabras trabajadas en el susurro. El cansancio de la voz dispersa lo que cuentan, despreocupados por la certeza de su aprehensión.

Aparece algo de la naturaleza del murmullo, esa cosa hecha de sonido y músculo que a veces canta, a veces cuenta, a veces se pierde y luego encuentra su camino para seguir haciendo eco.

Intentaré aquí esbozar algunos de los recuerdos que pueden construir una estructura de reflexión y sospecha. Contados a mí y a otres amigues, son recuerdos que no encajan, que confrontan, desafían y señalan límites a un cierto sentido de la acción política. Aspirantes a operativos tácticos, anuncian que la pluralidad del ser produce una pluralidad del actuar. Dibujan horizontes y sospechas para los proyectos de secularización. Narran una política encantada.

El terecô es una religión de matriz africana con importante influencia indígena cuyo lugar de nacimiento es la región de Cocais, concretamente el municipio de Codó, en el interior del Estado de Maranhão en Brasil. También identificada como encantoria y macumba —y en muchos casos como umbanda—, encontramos practicantes de terecô y tiendas desde Ceará hasta Pará, cada uno con un terecô distinto. Esta diversidad hace que cualquier intento por definir terecô o encantoria sea insuficiente. No sólo por la complejidad y variedad de prácticas de cada casa, cada una con su propia doctrina, sino también por el secreto y el misterio que la acompañan. En el terecô, la obediencia, el cuidado, las obligaciones y la atención se dan a los encantados, entidades que descienden o se incorporan al cuerpo de les brincantes (como se llama a sus practicantes) en diferentes contextos de la vida social, no necesariamente restringidos al momento de tocar el tambor. Esta presencia sistémica convierte a estas entidades en seres que participan activamente en la vida cotidiana de les brincantes, entremezclando la vida humana con la no humana.

Como una de las ciudades con mayor concentración de terreiros por metro cuadrado de Brasil, Codó es llamada peyorativamente «tierra de macumba», «capital del hechizo» y «meca de la brujería», estigma producido por el racismo y la intolerancia religiosa a las religiones de matriz africana en Brasil. Al mismo tiempo, la fama de Codó se debe también a una gran demanda, por parte de personas de todo Brasil, de padres santos y madres santas que trabajan en la ciudad resolviendo problemas de distinta naturaleza, desde el amor hasta la política. Aunque extendido y muy presente en el día a día de la ciudad, el prejuicio hacia el terecô y les brincantes es explícito, asociándolo con «cosas del diablo», especialmente por parte de las iglesias evangélicas y neopentecostales. La encantoria, sin embargo, responde a su manera.

Fue el 16 de agosto cuando les brincantes, encantades y partidaries de la Tenda Espírita de Umbanda Rainha Iemanjá, cuya santa madre es Mãe Janaína, hija del  difunto Bita do Barão, un famoso padre santo de la ciudad, salieron a la calle. En esta passeata —un evento que se realiza en muchas carpas en las que les encantades y brincantes salen a la calle y caminan durante horas— les brincantes recorrieron el centro de Codó guiades por un sistema de sonido de más de 3 metros de altura que amplifica los tambores al ritmo de la Mata. Justo al comienzo del desfile, había un grupo evangélico que cantaba canciones de alabanza a Jesucristo, gritando maldiciones a les brincantes. De repente, en medio de este grupo, un niño que no debía tener más de 15 años recibió a la entidad Pomba Gira, abriendo un círculo a su alrededor con movimientos irreverentes. Su coreografía es pronto identificada por les brincantes que, con humor, se dan cuenta de lo que allí sucede. La entidad baila en medio de les creyentes, desafiando sus oraciones y exorcismos. Algunes intentan contenerla, sin éxito. Tras el paso de la procesión, Pomba Gira se marcha llevando el cuerpo del niño al suelo.

Fruto del racismo estructural y religioso del Estado y de la sociedad colonial brasileña, el terecô y las comunidades religiosas negras, al igual que muchas de las religiones de matriz africana en Brasil, están marcados por una persecución y una represión históricas, más vinculadas al Estado que a otras comunidades religiosas. Los antiguos —»viejos troncos», como los llaman aquí— cuentan algunas historias sobre esa época, especialmente sobre algunas tácticas para que los tambores no dejaran de sonar, y para que la práctica sobreviviera hasta hoy. Las historias, aunque son muchas, se transmiten poco a les más jóvenes y están constantemente sometidas a la desaparición y al olvido. Por eso pido permiso a les brincantes y a les encantades para contarlas aquí.

La irreverencia de les encantades en relación con quienes les desafían aparece en diferentes obras sobre el terecô. La antropóloga Mundicarmo Ferretti registró que Légua Boji Buá de Trindade, o Velho, antigua entidad y jefe de la Encantaria da Mata Codoense, estaba asociado a la defensa de les esclavizades contra los amos. Su actitud desafiante estuvo marcada por historias de apariciones transgresoras. Se dice que solía entrar en la ciudad montado en un burro, sujetando la cola del animal como rienda, escupiendo en las casas de los blancos. A quien se acercaba a hablar con él le castigaba inmediatamente apoderándose de elle y haciéndole luchar en el suelo, o poniéndole a trepar por altos árboles llenos de espinas. Después se iba con su botella de cachaça y desaparecía.[1] Raimundinho Pombo Roxo, padre santo de 94 años, cuenta la historia del día en que el Velho fue detenido en la comisaría tras una redada policial, un hecho recurrente en la época en que el terecô estaba prohibido y era perseguido por la policía. En la historia, registrada por primera vez por la antropóloga Martina Ahlert,[2] Velho, encima de la difunta Nazara, llegó a la comisaría arrestado, pero pronto pidió cachaça y bailó al son de la cabaça que tocaba Raimundinho. Desafiando al teniente Vitorino —una figura que aparece en diferentes recuerdos de la persecución del terecô— y a los policías con bailes redondos y sorteos densos y constantes, fue liberado para no volver jamás.
Escuché de Tereza, una pequeña madre de la Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara, actualmente dirigida por Mãe de Santo Maria dos Santos, la historia de otra detención de la Vieja Légua. Durante una redada policial para acabar con el terecô, mientras todes huían, Légua Boji, montado (incorporado) en un hombre, se puso en medio de la sala, extendió las manos y dijo al policía: «Arréstame». Así lo hicieron y lo llevaron a la comisaría. Al llegar allí, abrió la celda y ordenó a los policías que entraran. Confundido por la petición, Légua no tardó en explicar: «No he hecho nada malo para que me detengan, habéis sido vosotros los que lo habéis hecho, así que entrad ahí», y los policías cumplieron. El viejo Légua acaba de salir. Cada vez que escucho historias sobre cómo les encantades desafiaron al Estado atacando a la policía pienso en la política radical de esta memoria. En esta política de desafío se juega con la racionalidad del Estado. Su fuerza reprimida es desafiada por les encantades y les brincantes, no sólo metiendo miedo a sus agentes, sino también jugando, bromeando y bailando con su autoridad.

Lo lúdico, lo político y lo desafiante se cruzan en la configuración de una acción política propia.

También me contaron historias de policías que entraron en las tiendas para prohibir el terecô, pero acabaron «cayendo» en él. El padre santo Zé Baixada me contó que él mismo puso a tocar la cabaça a unos policías que querían acabar con su fiesta: «Tocaron hasta la mañana. No sabían tocar, pero en ese momento aprendieron». Tereza cuenta una historia similar. Cuando aquel teniente Vitorino intentó acabar con el terecô en la tienda de Doña Naza, al llegar tiró la porra y la pistola al suelo, se quitó los zapatos y bailó el terecô durante toda la noche: «No sabía por qué, pero fue a prohibir el terecô y acabó cayendo en él». El sentido de «caer» también alude a una política del derrocamiento, tanto el cuerpo como la autoridad caen, sucumben a una rítmica y son arrastrados a una atmósfera. Someterse al ritmo del terecô, llamado ritmo o tambor de la selva, es transformar la autoridad performativa del Estado. Al encantar los cuerpos de los policías aparece una política diferente. Desde que empecé a escuchar estas historias no he dejado de pensar en cómo estas inusuales tácticas de confrontación con el poder del Estado trastocan gravemente cualquier programa político guerrillero o repertorio táctico contracolonial.

Esta persecución sistemática y el estigma de la brujería hicieron que muches de les padres y madres santes tocaran el tambor en lugares reservados, como en la parte trasera de las casas o en espacios más alejados de la ciudad, en los bosques de babaçu o cerca de los ríos y lagos. Tocaban en silencio, a menudo sin tambor, utilizando bambúes, palmas y otros instrumentos. La antropóloga Martina Ahlert, en su trabajo sobre el terecô de Codó, nos cuenta una conversación que tuvo con Seu Bigobar, en la que éste dice que les encantades se consideran les dueñes del bosque y, por tanto, restringían el acceso a estos espacios a quien elles querían: «Sólo entraban en el bosque les que les encantades querían».[3] «Se dijo» —escribe Ahlert— «que los policías oyeron el sonido de sus tambores marcando el inicio de los rituales, pero que cuando se dirigieron hacia ellos, acabaron perdiéndose. Cuando se dieron cuenta, ya estaban en otros lugares del municipio».[4] Los policías escucharon el tamborileo desde un lado pero fueron llevados a otro, y así sucesivamente. En otros casos, los caminos nunca llevaban al destino. Caminaban pero se perdían constantemente. Me enteré por doña Mazé, esposa de Raimundinho Pombo Roxo, que en los alrededores donde se tocaba el tambor se cerraban los caminos con oraciones para que la policía no los encontrara. La madre de Santo Vicença me contó, entrelazando los dedos, que el propio bosque cerraba los caminos con raíces llenas de espinas: «Buscaron toda la noche y no pudieron encontrar el terecô«. Como una especie de política de engaño, les encantades alteraron las percepciones, los caminos y las direcciones para que se produjera el disimulo.

Otros recuerdos revelan la participación activa de les encantados en esta resistencia, como el que cuenta Roberto, un taxista de la ciudad, que recuerda las anécdotas de su tío, que tenía una pequeña mesa de santo en su casa y hacía su trabajo allí: «vivíamos en este tramo aquí, al otro lado del puente, en la Praça da Bandeira. Él estaba haciendo lo suyo allí, cuando los guardias municipales, la policía, pasaban silbando y entonces mandaba (…) sus encantades llevaban a esta gente a bañarse en el río, en el Itapecurú, hasta que se acababa. (…) Él se encarnaba y se iba a bañar. Cuando terminara, entonces los dejaría ir». Estas historias son comunes y también fueron identificadas por Martina Ahlert, era «común […] escuchar que cuando los policías encontraban el lugar del tambor ‘caían’ (es decir, estaban encantades), bailando hasta la mañana del día siguiente».[5] Cícero Centriny cuenta también el día en que el nefasto teniente Vitorino es tomado por un encantado cuando llega a un terecô en el Quilombo Santo Antônio dos Pretos, cuna mítica de la religión.[6] Los ancianos y les propies encantades cuentan diferentes historias en distintas regiones de la ciudad, desde Miragaia hasta Santo Antônio dos Pretos. El hecho es que les encantades incorporaron a los policías para hacer participar a sus cuerpos en el terecô. En este sentido, además de la irreverencia performativa, además del engaño, podemos identificar en estos relatos una afrenta ontológica al propio concepto de política occidental.

Encontré en estas narraciones, especialmente en las de les encantades que incorporan policías, la confirmación de una sospecha. Si me preguntan por la verdad, por las pruebas, por la posibilidad de que todo esto sea una gran fantasía, no dejo de pensar en la fabricación que es la propia política, especulación sobre especulación, mito sobre mito. Del contrato social a la justicia, nos ahogamos en la fábula. Lo que se moviliza aquí es otra sociabilidad y, por tanto, otra política. No es una «creencia» o un «fenómeno cultural», sino otra forma de concebir la agencia y la intransigencia de los seres. Al desafiar al Estado, les encantades y les brincantes también desafían la historia occidental, la historia de las revoluciones, la historia de los levantamientos, las insurgencias y las agitaciones construidas sobre un racionalismo secular que pretende eliminar la relevancia de la espiritualidad y la religiosidad, así como de otros seres, en la movilización política de muchas sociedades.
Esta sospecha tiene su eco en los debates contemporáneos sobre lo que se ha denominado luchas ontológicas, en las que los no humanos participan activamente en los procesos de movilización social y política. Según Arturo Escobar, si el concepto de comunidad deja de centrarse en lo humano y comienza a incluir presencias no humanas, consecuentemente «el terreno de la política se abre a los no humanos».[7] Surgen nuevas tácticas y movimientos como formas propias de lucha. Las diferentes expresiones ontológicas conducen tanto a otras formas de convivencia y ascendencia, como a otras formas de participar políticamente en la sociedad en la que se insertan.
Podemos pensar en la presencia de tácticas en los conflictos y las guerras que implican diferentes formas de protección y cierre del cuerpo, el papel de las entidades religiosas y les líderes en los movimientos políticos, la capacidad de ciertos sujetos de transformarse en animales u otros seres. Todas estas y muchas otras elaboran múltiples ontologías políticas. Marisol de la Cadena y Arturo Escobar han trabajado con la cuestión de la pluralización de la política[8] cuestionando el impacto en la concepción moderna de la política cuando ésta no se restringe a los humanos a través de la aparición de actores sociales hasta ahora a la sombra de la política, como líderes religioses, entidades, dioses y otros seres.
Si volvemos a los casos de los terecô y a su historia de luchas, identificamos un modo específico de encuentro y confrontación entre mundos traducido en diferentes tácticas encantadas. Cuando los seres se multiplican, las posibilidades de acción se multiplican. Les encantades no sólo se enfrentan al Estado, sino que toman posesión de sus agentes, encarnándose en sus cuerpos para hacerlos suyes. Más que abrir la política a otras ontologías, multiplicando sus posibilidades de acción, disrupción e invención, es importante reconocer la multiplicidad de tácticas que guían las luchas. El caso de la participación de les encantades en las acciones contra las redadas policiales que buscaban reprimir el terecô es sólo un caso dentro de un mapa más amplio de diferentes procesos de insurgencia, levantamiento y resistencia en el que están presentes entidades, fuerzas y tecnologías.
Los diferentes grupos sociales que sufren la violencia colonial reaccionan arrastrando sus cosmologías junto con modos específicos de acción política[9] movilizando lo que Luiz Antonio Simas y Luiz Rufino denominaron «espiritualidades de batalla»[10]: el uso táctico de la religiosidad en las confrontaciones contracoloniales. En este mapa de espiritualidades insurgentes, tejido sobre el telón de fondo de un sentido secular de la política, se dibujan sistemas orientativos, puntos de brújula para otros horizontes, hechos, acciones, seres y pensamientos que, al multiplicar la política, multiplican juntos las formas de disputarla.

Notas

  1. Ferretti, Mundicarmo. 2001. Encantaria de “Barba Soeira”. Codó, capital da magia negra?. São Luiz: UFMA. p. 160.

  2. Ahlert, Martina. 2021. Encantoria: uma etnografia sobre pessoas e encantados em Codó (Maranhão). Curitiba: Kotter Editorial, EDUFMA. p. 69 – 70.

  3. Ibid. p. 67.

  4. Ibid. p. 69.

  5. Idem.

  6. Cicero Centriny, Terecô de Codó: uma religião a ser descoberta (Brazil: Zona V Fotografias Ltda, 2015).

  7. Escobar, Arturo. 2014. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Ediciones Unaula. p. 104.

  8. Cadena, Marisol de la. 2010. «Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond “Politics”». Cultural Anthropology 25, nº 2: 334– 370; Escobar, Arturo. 2014. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Ediciones Unaula.

  9. Reis, João José e Gomes e Flávio dos Santos (eds). 2021. Revoltas escravas no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. p. 26.

  10. Simas, Luiz Antonio e Luiz Rufino. 2020. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula Editorial.

Comentarios

No hay comentarios disponibles.

filtrar por

Categoría

Zona geográfica

fecha