Projector - Brazil

Rodrigo D'Alcântara

Reading time: 6 minutes

A
A

04.10.2023

Ascensão e queda das Bixas – cinco anos de um movimento dissidente na arte contemporânea brasileira

Ascensão e Queda das Bixas é um média-metragem no formato de antologia de performances e danças. O filme se passa num futuro distópico no qual entidades surgem após eras de dominação da heteronormatividade endêmica opressora. A subversão e atualização do sagrado ocidental unem-se em elementos de mitologia sincrética e cultura pop, nessa obra experimental de audiovisual. A narrativa se dá em 3 Passos (capítulos) que trazem estéticas futuristas, neobarrocas e pós-pornográficas.

 

Ascensão e Queda das Bixas (AQ das Bixas)
Videoarte, Full HD
TIEMPO: 38 min
2018

 

Disponível Aqui

Ascensão e Queda das Bixas, ou AQ das Bixas como ficou mais conhecido, e um filme video-artístico feito em colaboração com uma rede de artistas dissidentes da America Latina que se encontrava na cidade do Rio de Janeiro entre 2017 e 2018. Éramos artistas de diferentes regiões do Brasil, da Colombia, do Equador e do Chile. Em 2023, o filme completa cinco anos de existência, aqui celebrados pela exibição de sua versão remasterizada na sessão Proyector da Terremoto Magazine. Neste pequeno artigo não estou revelando mistérios (que seguem preservados pelas composições emblemáticas do filme). Narro fluxos, encontros e desencontros por trás da trajetória de um filme que hoje vejo como um movimento que tem o potencial de seguir inspirando novas gerações que se encontram na dissidência.

AQ das Bixas foi realizado durante minha pesquisa de mestrado em artes visuais na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na tese “O desejo por trás da queda: ficções e ritos do corpo bixa”, construo uma analise poética sobre a iconografia da queda e suas implicações com o sagrado homoerotico, o que chamo de queda disruptiva. Nesta investigação estava interessado principalmente em entender as operações do sistema hegemónico e como as identidades marcadas como dissidentes poderiam abraçar esse lugar da queda, do limite, da margem, como potencia e não como fim. Para isso, estudei alguns elementos da iconografia cristã que trazem a queda e o êxtase para pensar diálogos com um repertório homoerótico. O sincretismo se manifesta como subversão e atualização de uma esfera católica provinda de um espectro colonial, ainda tão implicada nas relações morais, simbólicas e espirituais que formam um senso comum brasileiro e latino-americano de fe. Outro aspecto chave de minha tese era estudar o que chamo de estado entico da performance, ou basicamente como performar permite o acesso de uma espécie de canal mediunico que faz o artista extrapolar suas faculdades físicas, emocionais e espirituais. Ao pensar numa visão iconoclasta do cristianismo, percebi que todo movimento de subversão tem sua assimilação. Dessa forma, o filme traz diversas entidades que criam um panteão profano, desafiando o sagrado colonial através do sincretismo e instaurando suas próprias mitologias e noções de sagrado a partir das dissidências sexuais e de género.

Estes aspectos da pesquisa estão presentes no filme, porem muito alem de teorias e academicismos, o filme foi escrito a partir de vivencias, sonhos e angustias, compartilhados com as manas que me alinhei naquele tempo-espaço. Muito do projeto se deu em conversa com a protagonista do filme, a artista-pastora Ventura Profana, a qual conheci em uma residência artística vinculada a Aprosmig em 2016, na qual vivemos por cerca de duas semanas em um bordel no maior complexo de prostituição do Brasil, em Guaicurus, Belo Horizonte. Neste período, Profana e eu trocamos varias experiências e impressões sobre como pensar formas de manifestar a espiritualidade que vem de perspectivas dissidentes. La conhecemos também a artista trans-fronteirica Bruna Kury, que mais tarde nos apresentaria para uma rede de artistas dissidentes latines que viria a compor o elenco do filme. Em 2017, no evento de performances “Furia Dissidente”, curado por Kury no Espaco Capacete (Rio de Janeiro), conheceríamos o coletivo equatoriano Pachaqueer, a performer colombiana Promixkua, entre outres. Neste momento já havia mostrado o primeiro rascunho do roteiro de AQ para Profana e para o cantor Jeza da Pedra, que também aceitou participar do projeto. Dai para frente cada uma de nos acionou seus colaboradores e o filme começou a ganhar forma e se expandir em diversas direções.

Inicialmente escrevi o roteiro pensando as cenas em dialogo com obras especificas das artistas convidadas. A cena da personagem Dioneia, interpretada por Lyz Parayzo, por exemplo, foi escrita pensando em uma desconstrucao de um trabalho prévio da artista, intitulado “Fato Indumento” (2015). Em “Fato Indumento”, Lyz performa usando seu corpo como suporte. A artista tem sua semi-nudez coberta por camadas de papel e cola, que aos poucos formam um grande vestido efémero. Na respectiva cena de referencia em AQ, a personagem de Parayzo faz um movimento contrario. Coberta de diversas camadas de tecido e flores artificiais, Dioneia arranca suas vestes e revela pouco a pouco uma identidade não-binária que brinca com os elementos florais para elucidar a pluralidade sexual. De forma semelhante, a personagem “Trilogia Genesis”, interpretada por Rafael Bqueer, revisita e descontroi a serie de fotografias de Bqueer intitulada “Alice e o chá através do espelho” (2013-2017). Nessa serie de fotos, Bqueer performa como a personagem Alice no pais das maravilhas, vestindo seu típico vestido azul e segurando uma xícara, desta vez em grandes centros urbanos e lixões brasileiros. Em AQ, a personagem Trilogia Genesis em uma de suas cenas caminha sobre diversas xícaras de porcelana quebradas, subvertendo o imaginário invocado pelo trabalho prévio da artista. Alem disso, ao decorrer das gravações muitos improvisos e alterações também ocorreram por diversos motivos.

O filme foi feito em um contexto de muitas incertezas, em um Brasil recém atingido por um golpe de estado que depôs nossa primeira presidenta Dilma Roussef e abriu um vórtex de obscurantismo que culminaria posteriormente no mandato de Bolsonaro. Gravar o filme era urgente, assim como nossa sede de viver. Gravamos tudo na forca e na coragem, maquiávamos a nos mesmas, gravávamos com o equipamento que tínhamos em mãos, nos acolhíamos e nos estranhávamos num piscar de olhos. Corremos atras de parcerias institucionais com ruídos, burocracias e muita audácia, permitindo a produção do filme em espaços como Capacete, Centro Municipal Helio Oiticica, Fundação Progresso e Museu de Astronomia e Ciências Afins. Não e possível romantizar a precariedade e os embates interseccionais que acontecem ao se propor uma obra composta por uma constelação de artistas dissidentes como e o caso de AQ das Bixas. Ha o acumulo de funções por falta de financiamento, há a exaustão, há os confrontos de visões de mundo e de expectativas, mas permanece sobretudo uma obra que foi laboratório coletivo; uma plataforma que nos permitiu criar, brincar, experimentar em consonância com as nossas manas contemporâneas.

Desde sua estreia no espaço Despina (Rio de Janeiro) em 8 de agosto de 2018, a obra percorreu um longo caminho, tendo reconhecimento internacional e circulando em importantes locais do cinema e da arte, como Festival de Arte Erótico VI y VII ediciones (Chile), Valongo Festival Internacional da Imagem (Brasil), Aphrodite*: Athens & Epidaurus Film Festival (Grecia), Transformations Trans* Film Festival Berlin (Alemanha) e Museo Ettore Fico (Italia). Mesmo sem representação alguma de galeria ou produtora, o que era inicialmente um filme virou também uma plataforma dissidente que entre 2018 e 2019 articulou festas, exposições coletivas e shows. O filme segue sendo exibido em circuitos independentes e instituições de arte ate hoje, muitas vezes acompanhado de mesas de debates e outras provocações. Sem termos noção da dimensão que este projeto tomaria, nosso grupo de monas, travas e bixas iniciava cinco anos atras um movimento que segue reverberando na trajetória artística de cada uma de nos e nas diversas cenas queer mundo afora. AQ das Bixas foi um encontro de subjetividades criativas difícil de se repetir, que deixa um legado especifico de um movimento artístico efémero pautado na potencia da articulação de simbolismos dissidentes Latino-americanos.

Comments

There are no coments available.

filter by

Category

Geographic Zone

date