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15.02.2024

As muitas caras da memória na 22ª Bienal Sesc_Videobrasil

Com 60 artistas do Sul Global, exposição em São Paulo tem curadoria de Raphael Fonseca e Renée Mboya e celebra os 40 anos do Videobrasil, fundado e dirigido por Solange Farkas, em parceria com o Sesc

Matéria produzida pela equipe Bienal Sesc_Videobrasil a convite da Terremoto.

Por Marcos Grinspum Ferraz

No centro do espaço expositivo, um trem de brinquedo circula incessantemente pelas curvas de um pequeno trilho, com vagões que carregam anúncios sobre os benefícios da industrialização. Em uma mesa ao lado, em escala um pouco maior, há também a miniatura de um vagão que dá suporte a uma tela, na qual imagens sobre o mesmo tema são projetadas. O contexto ali referido pelo jovem artista Josué Mejía é o México dos anos 1940, período em que o país se envolveu na Segunda Guerra Mundial; o espaço expositivo é o Sesc 24 de Maio, em São Paulo, onde está em cartaz até 25 de fevereiro de 2024 a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil | Especial 40 anos.

“A obra aborda a relação que o sistema ferroviário mexicano teve com o cinema de propaganda feito pelo governo durante a época”, explica Mejía. “Em minha produção, tento revisar os imaginários que a arte mexicana criou – seja através do audiovisual, dos murais, da arte gráfica ou das caricaturas – para disseminar determinadas ideias de modernidade e progresso, sempre muito relacionadas ao poder de seu vizinho do norte, os Estados Unidos”. A instalação Rumbo al norte, rumbo al futuro! é uma das várias obras da bienal que tratam de memórias e apagamentos ligados a história de países, povos, grupos sociais ou mesmo famílias, propondo narrativas alternativas e subvertendo versões oficiais perpetuadas em diversas regiões do mundo. Intitulado A memória é uma ilha de edição, com direção artística de Solange Oliveira Farkas e curadoria do brasileiro Raphael Fonseca e da queniana Renée Akitelek Mboya, o evento marca também os 40 anos do Videobrasil, criado em 1983 como um festival de vídeo e hoje dedicado a todas as práticas artísticas.

“É interessante que temos desde artistas que lidam com uma noção de macro-história até pessoas que lidam com uma ideia de micro-história. Alguns trabalham, por exemplo, com arquivos, material de jornais ou imagens de televisão, que têm uma relação com as massas, enquanto outros partem de materiais familiares e íntimos, interessados numa relação mais subjetiva”, explica Fonseca. Há ainda obras que criam universos fantasiosos e ficcionais, outras que se utilizam de Inteligência Artificial, além de trabalhos feitos em suportes considerados mais tradicionais, como pinturas, têxteis e esculturas. O vídeo, que remete aos primórdios do Videobrasil, também ganha espaço de destaque. “Há realmente uma espécie de alargamento do que poderia ser essa relação entre a memória e o esquecimento, a partir de muitos interesses artísticos diferentes. E assim é criado um ziguezague interessante para o público, com um conjunto expositivo que não aponta apenas para uma direção.”

 

Dos 60 artistas e coletivos que expõem na bienal, provenientes de 38 países do Sul Global – África, Américas, Leste europeu, Oceania, Oriente Médio, Sul e Sudeste asiático –, a América Latina se destaca com cerca de um terço dos participantes. Além de Mejía, outra artista a discutir controversos temas nacionais é a colombiana Gabriela Pinilla, que investiga a história de grupos políticos de esquerda e a repressão de Estado em seu país através de murais, livros e ilustrações. Artista e professora universitária, Pinilla ocupa uma grande parede com a pintura site specific Guerrillera, montaña, compañera, um registro sobre a história da guerrilheira Carmenza Cardona Londoño (1953-1981). Do quinto andar do Sesc, através de uma janela de vidro, o visitante pode observar a pintura de quase 9 metros de altura e 6 de largura e, ao mesmo tempo, folhear os livros sobre o tema publicados por Pinilla nos últimos anos.

 

 

 

 

Entre as obras de cunho mais pessoal e subjetivo, a videoinstalação em três canais Retiro, da porto-riquenha Natalia Lassale-Morillo, é um retrato em prosa e performance das recordações de sua mãe. Através de entrevistas, filmes e reencenações, a obra repassa a vida de três gerações de mulheres da família de Natalia, incluindo também sua avó, e reflete diferentes estágios de decomposição da memória. A brasileira Julia Baumfeld, por sua vez, se utiliza de vídeos e fotografias registrados por sua família nos anos 1980 para conceber a instalação Era, na qual o caráter supostamente banal das imagens íntimas acaba por nos causar estranhamentos capazes de ressignificar memórias coletivas. Já a chinesa Youqine Lefèvre narra, em The Land of Promises, a jornada de famílias belgas que viajaram a China em 1994 para adotar crianças – sendo uma delas a própria artista. A partir de sua história pessoal, Youqine debate a política chinesa de controle de natalidade, suas nuances e complexidades.

Apesar de tamanha diversidade percebida nos trabalhos, Solange ressalta também as afinidades entre os artistas e as aproximações entre os lugares do mundo que habitam – países geralmente marcados por grandes desigualdades sociais, passado colonial, instabilidade política e, muitas vezes, forte violência contra grupos minoritários. “O Videobrasil tem essa premissa de apostar em projetos e artistas não chancelados necessariamente pelo mercado. Esse é talvez o nosso principal lugar, um lugar de descoberta que tem a ver com alteridade, com esse sentimento de pertencimento. Um espaço de reunir artistas de vários cantos do mundo, com as línguas mais diversas, mas com perspectivas e pesquisas tão similares, apesar das distâncias; similares no sentido conceitual, de contexto, das histórias e narrativas”, conclui ela.

Quatro décadas de história

Um dos poetas que mais impactou o cenário da contracultura e o universo da música popular brasileira a partir dos anos 1960, o irreverente e performático Waly Salomão (1943-2003) é o autor do verso que intitula a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil. Retirada do poema Carta aberta a John Ashbery, a frase “a memória é uma ilha de edição” guiou a curadoria na escolha dos artistas, selecionados a partir de chamada aberta com mais de 2.500 inscritos. O escrito de Waly dá o tom, ainda, da exposição paralela Especial 40 anos, que ocupa outro espaço do Sesc 24 de Maio com uma imersão no acervo e na história do Videobrasil. Com curadoria de Alessandra Bergamaschi e Eduardo de Jesus, a mostra revisita as quatro décadas do evento, criado como um festival de vídeo bastante experimental nos derradeiros anos da ditadura que assolou o Brasil (1964-1985) e transformado, progressivamente, em uma bienal mais abrangente de arte contemporânea.

 

Ao ativar e colocar em diálogo parte do acervo reunido pelo Videobrasil desde seus primórdios – que hoje reúne cerca de 3 mil obras em vídeo e um vasto arquivo de documentos e publicações –, a mostra possibilita uma imersão na trajetória do evento e, consequentemente, em histórias globais que vão para muito além dele. Através de trabalhos de variadas épocas, depoimentos de artistas e pesquisadores, uma linha do tempo detalhada, duas bibliotecas e uma videoteca, apresenta-se um profundo panorama da história do Brasil e do mundo nas últimas décadas, seja no que se refere à geopolítica, ao desenvolvimento das mídias e tecnologias, aos caminhos tomados pela videoarte e ao crescente hibridismo estabelecido entre as linguagens artísticas ao longo dos anos.

“Olhar para o passado do Videobrasil revela, paradoxalmente, um movimento constante de auscultação de futuros”, escreve Solange em texto de apresentação da bienal. “Fonte de articulações curatoriais, poéticas e históricas profícuas e reveladoras, que se estendem em muitas direções no tempo e no espaço, a coleção reunida em torno do Videobrasil assume um lugar cada vez mais central em nossas ações. (…) Se o que motivou sua constituição inicial foi a urgência de preservar trabalhos produzidos na frágil mídia eletrônica, hoje vemos esse esforço como algo que vai muito além da tecnicalidade. Preservar essa história para gerações futuras é olhar para o Acervo como um projeto de memória em edição, buscando sua pertinência no presente”, conclui ela.

Diversos assuntos ligados aos 40 anos são destacados também na série de programas públicos que tiverem início na semana de abertura da bienal e seguem até fevereiro de 2024. Através de encontros com artistas e curadores, performances e outras vivências, os programas representam um aprofundamento dos debates levantados nas mostras principal e paralela. Sob curadoria de Renée Mboya, as atividades se propõem a intensificar as trocas entre os artistas participantes e, do mesmo modo, entre eles e o público. Nas palavras da queniana: “Acho que o ponto central com o qual todos concordamos, neste momento sociopolítico do Brasil e do mundo, é a necessidade de que haja um foco maior na solidariedade. E uma das formas pelas quais podemos identificar-nos uns com os outros e criar posições de solidariedade é recordar juntos, recordar coletivamente e encontrar formas de articular noções de memória. Isso, de algum modo, reestabelece nossas posições políticas e nosso compromisso uns com os outros”.

Premiação e residências

Como já é tradição na Bienal Sesc_Videobrasil, o evento premiou nove artistas, dando seguimento a sua política de incentivo à produção contemporânea e de fortalecimento das redes internacionais entre instituições. Os brasileiros Froiid e Leila Danzinger levaram o Prêmio Sesc de Arte, passando assim a integrar o Acervo Sesc de Arte; o chinês Bo Wang ficou com o prêmio em dinheiro concedido pela Ostrovsky Family Fund, dos EUA; o zambiano Nolan Oswald Denis ganhou o Prêmio do Júri; enquanto Gabriela Pinilla e o coletivo iraquiano Sada (Regroup) ficaram com menções honrosas. Já as residências artísticas foram concedidas ao haitiano Maksaens Denis, que levou o Prêmio de Residência Instituto Sacatar (Bahia, Brasil); à brasileira Janaína Wagner, que passará um período no Centro Cultural do Cariri (Ceará, Brasil); e à também brasileira Vitória Cribb, que produzirá uma obra audiovisual no Wexner Center for the Arts (Ohio, Estados Unidos).

Todos eles receberam, ainda, um troféu produzido pelo artista Denilson Baniwa, uma obra original inspirada em um matapi, armadilha utilizada por alguns povos indígenas para pegar peixes. De algum modo, a obra de Baniwa coroa uma bienal que reúne diversos artistas de povos originários de diferentes cantos do mundo, como o brasileiro Ailton Krenak, o guatemalteco Antonio Pichilla, a argentina La Chola Poblete, a chilena Seba Calfuqueo e o coletivo australiano Iwantja Arts.

A partir desta lista de nomes e olhando para o passado do Videobrasil, constata-se que na 22ª Bienal o protagonismo dado a artistas de regiões marginalizadas do globo segue o caminho proposto pelo evento já nos anos 1990, quando ele se internacionaliza e elege como foco a produção do Sul Global. “A realização da 22ª edição da bienal, que tem a memória como mote conceitual, é um convite a relembrar a origem da mostra”, destaca o diretor regional do Sesc SP, Luiz Galina (que assume o cargo após quatro décadas de gestão do sociólogo e filósofo Danilo Santos de Miranda, recém-falecido). Ele destaca, ainda, o papel do evento em “repercutir conhecimentos e memórias plurais, buscando contribuir para a reavaliação e a reinvenção do nosso lugar no mundo”. Hoje, as memórias surgem na bienal não por nostalgia, segundo Solange, mas para incentivar novos olhares e apontar para futuros possíveis.

“A memória, como diria Waly Salomão, é uma ilha de edição. E nesta 22ª Bienal cada um vai poder editar, a partir de suas recordações e perspectivas, uma série de narrativas. É nisso que estamos apostando.”

 

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