Marginalia - Brazil

Biarritzzz

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01.11.2023

Fazer charada

Convidamos Biarritzzz, artista transmídia antidisciplinar, para compartilhar parte de sua pesquisa em torno da criptoestética, do hacking da linguagem e da transgressão de códigos artísticos. Marginalia 95 se curva para rejeitar o descubrimento.

Tenho sentido uma urgência em falar pois sinto que meus trabalhos falam muito mais do que posso, devo ou consigo. Cada imagem, cada frame, cada segundo de animação são mundos que coabitam entre mim e aquelus que estão ao meu redor. Há uma desilusão da qual as artes visuais não me dão conta. Essa melancolia me move e também é motor de poesia: falar de tempo é falar do que se perdeu e do que não se viveu. Estou cansada de explicar tudo aquilo que precisa ser explicado em palavras porque as imagens não são suficientes. Nem podem ser. As livrarias fecham todos os dias enquanto que a palavra se torna cada vez mais código a ser decodificado, criptografado, cifrado.

O segredo é um commodity, mercadoria à venda por valores esdrúxulos. O que quero guardar do mundo?

Aqui para a Marginália gostaria de trazer um trecho de algumas reflexões.

Penso muito no poder da espontaneidade e do improviso. Porque pra mim a espontaneidade e o improviso são desobediências muito importantes que quebram com os gêneros instituídos. E a gente pode pensar gênero nas suas diversas conceitualizações. A liberdade em pensar corpo e imagem vem de entender e valorizar a espontaneidade e o improviso como desobediências a instituições de linguagem, de cultura, de poderes históricos estabelecidos. E isso é uma maneira muito potente de agir no mundo. Vejo muito essa postura na cultura dita popular em Pernambuco (o Cavalo Marinho, o Maracatu de Baque Solto, o Coco de Repente, o Coco de Trupé etc. O brinquedo.), e suas manifestações tradicionais religiosas: a não separação do que é corpo, do que é espírito, do que é música, do que é dança, do que é sagrado, do que é profano. Há um poder muito grande nesse lugar da não definição, no não-limite; não poder delimitar onde começa e onde termina algo.

Esse borrar de limites faz com que a concepção de erro deixe de fazer sentido. Pois a natureza do erro é a oposição ao acerto, e o acerto já está delimitado, definido. Ele já foi instituído por alguém.
O acerto é uma instituição porque é um modelo, um molde: uma lista de checagem de pontos em que você concordou com o que está instituído como certo. Se o erro é o oposto disso, o erro é tudo o que pode acontecer. Tudo o que, ainda, pode acontecer. Ele anda lado a lado com a brincadeira: a ausência de roteiro, a inafiançável presença sem-vergonha do desejo de contar e ser uma história.

Tenho recusado termos norte-americanos para definir movimentos ou práticas do que se tem feito poeticamente no Brasil e América Latina. E uma coisa observável dessas movimentações de aqui é a presença da magia, às vezes apenas como estética “tecnoxamânica”, numa dolorosa superficialidade que faz brilhar os olhos da branquitude. E às vezes como uma maneira própria de entender o mundo a partir de um modo de ser que respeita as ancestralidades e cosmovisões de onde viemos e de onde estamos.

Talvez o que observo na minha geração (não cronológico-etária mas de afinidade de pensamento) é um desejo comum de sobrepor a técnica, de ver os efeitos e linguagens do digital como possibilidade de subversão, numa postura de não se render à resolução, mas criar uma própria resolução, uma não-resolução que despreza a alta resolução e a alta definição dentro do capital das imagens. É ao mesmo tempo uma admiração e um desprezo aos softwares e ao aprisionamento da excelência técnica, a liberdade de não se subjugar ao que o software define como padrão, e criar lógicas de sentido próprias com as ferramentas disponíveis.

E fazemos alquimia: nos disfarçamos de alta resolução para revelar a precariedade, não como obstáculo a ser superado, mas como linguagem e posicionamento político, reproduzindo com ironia uma sátira do mundo que não queremos.

Recife, Outubro de 2023.

(esse texto traz alguns fragmentos reorganizados a partir de conversas com Letícia Barbosa e Raphael Fonseca)

 

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