25.07.2022
Prazer, a cosmopercepção e errância negra, um ensaio coregráfico
[Español abajo]
Introdução – Beatriz Lemos
Se existe uma erohistoriografia do corpo dissidente, essa provavelmente passa pelo movimento e pela errância. Ao rejeitarmos os aprisionamentos coloniais, percorremos rotas para que possamos compartilhar alguns segredos. Assim, certas trocas só são possíveis entre nós. Só entre nós. Determinades nós.
A união ao nosso desejo é um desses segredos divididos ao longo das rotas. E é, só aí, que entendemos que o erotismo tem a ver com liberdade.
Conversar com Luiz de Abreu é atravessar esse percurso, ou melhor, é caminhar dançando, criando movimentos aleatoriamente precisos ou cartesianamente soltos. É experimentar, entre o sensível e a razão, o desafio do novo, testemunhando a reinvenção de um corpo. Nosso encontro se dá a partir de uma provocação editorial feita por Terremoto e, assim, seguiu até aqui, contornando o tempo, a tecnologia, a privação, imaginando para nós as possibilidades de errância ainda não experimentadas. Pois, se vamos atravessar a maré, que seja com afetação, que seja para reencontrar a nós mesmos. E não existe (quase) nada mais velado, mais tabu e silenciado do que falar e praticar a autognose sobre a autonomia do desejo.
A arte de Luiz de Abreu nos ajuda há muitos anos a entender a fantasia da raça sob a perspectiva do erótico e as armadilhas impostas pelo racismo aos corpos pretos. Um trabalho que encara de frente o legado racista como um mecanismo que escancara códigos de poder presentes de forma estruturante na sociedade brasileira. Portanto, a conversa entre Luiz e eu surge em nossas vidas como um convite para refletir sobre o prazer para além do trauma racial. Com isso, acho que falamos sobre imaginar vias de escape que possa nos proporcionar acontecimentos de liberdade.
Se existe uma erohistoriografia do corpo dissidente, essa provavelmente passa pelo movimento e pela errância.
Então, eu acho que é meio por aí, é tentar pensar na cosmopercepção, ou seja, captar a realidade através de todos os sentidos do corpo. A partir dessa experiência eu começo a falar de um corpo que pensa para além do cérebro e um corpo que vê para além dos olhos.
2. Beatriz
Esse corpo que vê além dos olhos, pensa além da razão e encontra suas maneiras para escapar das armadilhas de manipulação é o mesmo corpo que carrega uma memória de tempos que não os nossos. Tempos de trás e tempos de frente. Uma memória que habita entre órgãos, braços e pernas. No filme Orí, a historiadora Beatriz Nascimento diz que o corpo negro em dança será sempre o corpo liberto. E assim, também nos terreiros de candomblé, pois quando o orixá dança, convoca a liberdade de todo um povo. Você acredita em uma memória ancestral do movimento? Entendo que a fuga é um estado latente que orienta nossos corpos. Mas será que existe algo enquanto herança que vai desde um repertório gestual até frequências respiratórias ou temperaturas corporais, e que conduza ou seja pulsante aos corpos racializados?
2. Luiz
Todo corpo negro em diáspora vem de uma mesma experiência da escravidão. Transformado em objeto e desumanizado, cria-se formas de resistência, como sendo um repositório da memória, uma biblioteca dos conhecimentos negros. É neste corpo que está todo o nosso conhecimento. É este corpo, constantemente traduzido e atualizado, que cria outras Áfricas. Assim, pensando no campo das religiões de matriz africana, que são feitas de dança, música, animismo e não apenas de um conceito do que é divino, é necessário o corpo em todas as suas potências para se conectar ao orixá e entidades. E a partir daí, deriva-se uma memória gestual.
O corpo negro na cidade está sempre em alerta e em estado de dilatação. Tenho falado desse corpo em constante estado de performance como uma ação política. E assim que me coloco no mundo.
Essa memória gestual da fuga é passada por gerações. Para ser um corpo negro andando na rua, por exemplo, é preciso conhecer algumas estratégias e códigos que passam por roupas adequadas, gestual mais lento e harmonioso, boas aparências, cabelo cortado e, atualmente, andar com uma bíblia embaixo do braço. Tudo como se fosse uma composição coreográfica do cotidiano que tem como dramaturgia um manual de sobrevivência do corpo preto.
4. Beatriz
Ultimamente, tenho pensado bastante sobre o direito ao desejo. Especialmente sobre o discernimento do desejo. Como os estímulos de vontade atuam em nosso corpo e promovem potência de vida – ou melhor dizendo, são a própria pulsão de vida. E por serem tão fundamentais estão intrinsecamente relacionados ao autoconhecimento e às políticas da consciência. Quando trago o direito ao discernimento, me refiro aos mecanismos de controle e que forçosamente induzem as subjetividades que desviam da norma dos códigos de conduta sociais, às idealizações de sociedade, família, trabalho, amor, funções de um corpo, etc. Enfim, será que desejamos o que realmente queremos desejar?
4. Luiz
Há uns 20 anos atrás eu fui a uma exposição em São Paulo de peças africanas vindas de um museu alemão. Lá, eu vi uma estatueta de Xangô com seios. Era um corpo masculino e feminino. Um tempo depois, eu fui à Alemanha e pude visitar esse mesmo museu, onde também encontrei peças peruanas, mexicanas e de vários países da África. Eu cheguei num lugar que tinha um barco africano, de mais ou menos 1 metro de comprimento. O segurança do museu me perguntou se eu queria tocar no barco. Então eu toquei. Ali eu pude sentir o DNA dos meus ancestrais. E eu só pude sentir isso pela autorização do segurança branco. Seguindo no museu, eu vi uma fotografia de alguns ingleses com os pés em cima de um baú que continha ouro, diamantes e peças artísticas africanas. Eu perguntei para a curadora: – “A Alemanha roubou essas peças africanas?”. E ela me respondeu: – “Não. Nós não roubamos. Nós compramos dos ingleses.”
Voltando à estatueta de Xangô, esse Xangô masculino e feminino, eu fiquei pensando nesse ideal de corpo que nos foi roubado, comprado e expropriado pelos colonizadores. Mas aquela estátua de Xangô me diz que existem outras possibilidades e outros ideais de corpo, de sexualidade, de gênero, erótica e potência sexual. Outro ideal de humano, que construa múltiplas configurações de corpo para reinventar desejos.
****
Introducción – Beatriz Lemos
Si existe una erohistoriografía del cuerpo disidente, ésta pasa probablemente por el movimiento y la errancia. Al rechazar los encarcelamientos coloniales, recorremos rutas para poder compartir algunos secretos. Así, algunos intercambios sólo son posibles entre nosotres. Sólo entre nosotres. Determinades, nosotres.
La unión a nuestro deseo es uno de esos secretos compartidos a lo largo de las rutas. Y es entonces cuando entendemos que el erotismo tiene que ver con la libertad.
Hablar con Luiz de Abreu es atravesar este camino; o mejor dicho, es caminar bailando, creando movimientos aleatoriamente precisos o cartesianamente sueltos. Es experimentar, entre lo sensible y la razón, el desafío de lo nuevo, atestiguando la reinvención de un cuerpo.
Nuestro encuentro parte de una provocación editorial hecha por Terremoto; y así siguió hasta aquí, sorteando el tiempo, la tecnología, la privación, imaginando para nosotres las posibilidades de errancia aún no probadas. Porque si vamos a cruzar la marea, que sea con afecto, que sea para reencontrarnos. Y no hay (casi) nada más velado, más tabú y silenciado que hablar y practicar la autognosis sobre la autonomía del deseo.
El arte de Luiz de Abreu lleva muchos años ayudándonos a entender la fantasía de la raza desde la perspectiva de lo erótico y las trampas que el racismo impone a los cuerpos negros. Es una obra que se enfrenta frontalmente al legado racista como mecanismo que expone los códigos de poder estructuralmente presentes en la sociedad brasileña. Por lo tanto, la conversación entre Luiz y yo surge en nuestras vidas como una invitación a reflexionar sobre el placer más allá del trauma racial. Con ello, creo que hablamos de imaginar vías de escape que puedan proporcionarnos acontecimientos de libertad.
Si existe una erohistoriografía del cuerpo disidente, ésta pasa probablemente por el movimiento y la errancia.
Su obra O Samba do criolo doido, de 2004, que ahora está de gira internacional, fue el tema de su tesis de maestría y es la obra que acompaña su proceso con la ceguera. Para que el bailarín Calixto Neto pudiera asumir la interpretación del espectáculo, desarrollaste una metodología propia, basada en la oralidad, en la que otros sentidos reverberan con más fuerza, permitiendo otra experiencia de coreografía. Me interesa pensar en las prácticas de aprendizaje que se apartan de las trampas del control y la estandarización del conocimiento, especialmente las que legitiman el cuerpo como medio de comunicación. ¿Cómo ha sido para ti coreografiar a través de otros sentidos además de la vista?
Llevo 40 años desarrollando un trabajo de danza que tiene que ver con mi cuerpo negro, o con la construcción de este cuerpo negro. Desde 2019, tengo una discapacidad visual, por lo que mi trabajo en la danza también crea una nueva textura. Antes eran cuestiones de género y del cuerpo racializado, y ahora es también de este cuerpo cegado. A partir de ahí, empiezo a trabajar en esta interseccionalidad.
Mi primera experiencia de danza con este cuerpo cegado fue en 2020, con la recreación del espectáculo O Samba do criolo doido, cuando la obra fue invitada a participar en el 20º Festival Panorama de Danza de París, en el Centre National de la Danse. Mi propuesta fue recrear el espectáculo en el cuerpo de otro intérprete. Así que se eligió al bailarín Calixto Neto y comenzamos un proceso de transmisión de la obra.
Mi primera pregunta fue pensar en las contradicciones que supone que una danza elaborada a partir de mi experiencia personal como persona negra exista en otro cuerpo negro. Y luego, cómo iba a transmitir una obra de danza sin hacer uso de los códigos tradicionales, como la visión.
Por ello, fue la necesidad la que nos hizo encontrar un nuevo lenguaje para este proceso. Así, la primera herramienta fue el tacto, ya que reconozco qué músculos se activan para producir determinados movimientos. Otro código utilizado fue el oído, ya que nos conectamos a través del ruido de las botas en el suelo y la dinámica de su respiración. Y también por la oralidad, siempre presente.
Incluso en la danza contemporánea, donde nos proponemos trabajar en un lugar no colonial del cuerpo, el ojo sigue siendo el líder del proceso creativo.
En algunas culturas del África negra, el conocimiento se transmite predominantemente a través de la oralidad. Entonces, creo que es un poco eso, es tratar de pensar en la cosmopercepción, es decir, captar la realidad a través de todos los sentidos del cuerpo. A partir de esta experiencia, empiezo a hablar de un cuerpo que piensa más allá del cerebro y de un cuerpo que ve más allá de los ojos.
Este cuerpo que ve más allá de los ojos, que piensa más allá de la razón y que encuentra sus maneras de escapar de las trampas de la manipulación es el mismo cuerpo que lleva una memoria de tiempos que no son los nuestros. Tiempos pasados y tiempos por venir. Un recuerdo que habita entre órganos, brazos y piernas. En la película Orí, la historiadora Beatriz Nascimento dice que el cuerpo negro en la danza siempre será el cuerpo liberado. Y así, también en las ceremonias de candomblé, porque cuando el orixá baila convoca la libertad de todo un pueblo. ¿Crees en una memoria ancestral del movimiento? Entiendo que la fuga es un estado latente que guía nuestros cuerpos. Pero, ¿existe algo así como una herencia que va desde un repertorio gestual hasta las frecuencias respiratorias o las temperaturas corporales, que conduce o pulsa a los cuerpos racializados?
Todos los cuerpos negros de la diáspora provienen de la misma experiencia de esclavitud. Transformado en objeto y deshumanizado, crea formas de resistencia por ser un depósito de memoria, una biblioteca de conocimiento negro. Es en este cuerpo donde reside todo nuestro conocimiento. Es este cuerpo, constantemente traducido y actualizado, el que crea otras Áfricas. Así, pensando en el ámbito de las religiones de matriz africana, que están hechas de danza, música, animismo, y no sólo de un concepto de lo divino, es necesario el cuerpo en todas sus potencias para conectar con los orixá y las entidades. Y de ahí se deriva una memoria gestual.
El cuerpo negro de la ciudad está siempre en alerta y en estado de dilatación. He hablado de este cuerpo en constante estado de rendimiento como una acción política. Así es como me sitúo en el mundo.
Este recuerdo gestual de la huida se transmite de generación en generación. Para ser un cuerpo negro caminando por la calle, por ejemplo, es necesario conocer algunas estrategias y códigos que pasan por la vestimenta adecuada, los gestos más lentos y armoniosos, el buen aspecto, el corte de pelo y, actualmente, caminar con una biblia bajo el brazo. Todo es como una composición coreográfica de la vida cotidiana que tiene como dramaturgia un manual de supervivencia para el cuerpo negro.
Este cuerpo que ve más allá de los ojos, que piensa más allá de la razón y que encuentra sus maneras de escapar de las trampas de la manipulación es el mismo cuerpo que lleva una memoria de tiempos que no son los nuestros. Tiempos pasados y tiempos por venir.
Tu obra narra la construcción social del cuerpo negro en Brasil. Cuando este cuerpo se materializa en el escenario —ya sea el tuyo en movimiento o el que has coreografiado—, esta materia lleva el lenguaje del deseo. Siendo en la actualidad el cuerpo ciego el que conduce la narración, se añade una capa más de significantes al discurso. En su estudio de la sociedad, ¿podemos decir que el carácter de lo erótico en el cuerpo racializado puede alcanzar su autonomía? Es decir, aunque históricamente el cuerpo negro haya sido leído como objeto de placer y propiedad, a partir de las reflexiones generadas por tu obra, ¿es posible concebir una experiencia de lo erótico que se disuelva o, en el mejor de los casos, no esté presa del trauma racial?
Creo que nuestra mentalidad está muy construida sobre la noción de Apolo, de belleza y equilibrio, que trae como ícono la escultura del David de Miguel Ángel. Cuando quito a Apolo y pongo a Exu, trabajo con otras nociones de belleza y desequilibrio. Cuando este dios griego se impone en nuestra cultura, también se impone la razón, y esta razón es el hombre blanco, masculino y heterosexual cis. Entonces, cuando traigo a Exu para pensar en la vida y la creación, también empiezo a entender que este cuerpo es hermoso, este cuerpo negro es hermoso.
A lo largo de mi vida, he ido reconstruyendo y reconociendo este cuerpo negro como protagonista y como poder. Y entonces me quedo ciego. En esta nueva configuración del cuerpo, y desde la circularidad de Exu, que es el señor del movimiento —pues mata un pájaro del ayer con la piedra que lanza hoy, y así el efecto se convierte en la causa en el tiempo— yo reinvento las experiencias del deseo de este cuerpo. Y eso es actuar con autonomía y autoridad.
En este sentido, O Samba es un desmontaje. Un procedimiento metodológico, que vengo desarrollando junto con otres, basado en las ideas de Ileana Diéguez, que no expone la totalidad, sino los elementos que la componen. Así, O Samba es un dispositivo para leer y desmontar los elementos racistas que subyacen en la estructura social brasileña. Al identificar estos elementos, podemos crear una herramienta poética, poderosa, radical y crítica sobre el erotismo del cuerpo negro.
Últimamente he estado pensando mucho en el derecho al deseo. Especialmente sobre el discernimiento del deseo. Sobre cómo los estímulos actúan en nuestro cuerpo y promueven la potencia de la vida —o mejor dicho, son la propia pulsión de vida. Y como son tan fundamentales, están intrínsecamente relacionados con el autoconocimiento y la política de la conciencia. Cuando traigo el derecho al discernimiento, me refiero a los mecanismos de control que inducen por la fuerza a las subjetividades que se desvían de la norma de los códigos sociales de conducta, a las idealizaciones de la sociedad, la familia, el trabajo, el amor, las funciones de un cuerpo, etc. Por último, ¿deseamos lo que realmente queremos desear?
Hace unos veinte años, fui a una exposición en São Paulo de piezas africanas procedentes de un museo alemán. Allí, vi una estatua de Xangô con pechos. Era un cuerpo masculino y femenino. Tiempo después, fui a Alemania y pude visitar este mismo museo, donde también encontré piezas peruanas, mexicanas y africanas. Llegué a un lugar en el que había un barco africano de un metro de largo. La seguridad del museo me preguntó si quería tocar el barco. Así que lo hice. Allí pude sentir el ADN de mis antepasades. Y sólo pude sentirlo por el permiso del guardia de seguridad blanco. Al avanzar por el museo, vi una foto de unes ingleses con los pies encima de un baúl que contenía oro, diamantes y piezas de arte africanas. Le pregunté al curador: «¿Alemania ha robado estas piezas africanas?» Y me contestó: «No. No las hemos robado. Las compramos a les britániques».
Volviendo a la estatua de Xangô, ese Xangô masculino y femenino, no dejaba de pensar en ese ideal de cuerpo que nos fue robado, comprado y expropiado por les colonizadores. Pero esa estatua de Xangô me dice que hay otras posibilidades y otros ideales de cuerpo, de sexualidad, de género, de erotismo y de potencia sexual. Otro ideal de humano, que construye múltiples configuraciones de cuerpo para reinventar los deseos.
Comentarios
No hay comentarios disponibles.